MUSEU
DO GAÚCHO 2014
CONTOS
O BOI VELHO
Cuê-pucha!… é bicho mau, o homem!
Conte vancê as maldades que nós
fazemos e diga se não é mesmo!... Olhe, nunca me esqueço dum caso que vi e que
me ficou cá na lembrança, e ficará té eu morrer… como unheiro em lombo de
matungo de mulher.
Foi na estância dos Lagoões, duma
gente Silva, uns Silvas mui políticos, sempre metidos em eleições e enredos de
qualificações de votantes.
A estância era como aqui e o arroio
como a umas dez quadras; lá era o banho da família. Fazia uma ponta, tinha um
sarandizal e logo era uma volta forte, como uma meia-lua, onde as areias se
amontoavam formando um baixo: o perau era do lado de lá. O mato aí parecia
plantado de propósito: era quase que pura guabiroba e pitanga, araçá e guabiju;
no tempo, o chão coalhava-se de fruta: era um regalo!
Já vê... o banheiro não era longe,
podia-se bem ir lá de a pé, mas a família ia sempre de carretão, puxado a bois,
uma junta, mui mansos, governados de regeira por uma das senhoras-donas e
tocados com uma rama por qualquer das crianças.
Eram dois pais da paciência, os dois
bois. Um se chamava Dourado, era baio; o outro, Cabiúna, era preto, com a
orelha do lado de laçar, branca, e uma risca na papada.
Estavam tão mestres naquele piquete,
que, quando a família, de manhãzita, depois da jacuba de leite, pegava a
aprontar-se, que a criançada pulava para o terreiro ainda mastigando um naco de
pão e as crioulas apareciam com as toalhas e por fim as senhoras-donas, quando
se gritava pelo carretão, já os bois, havia muito tempo que estavam encostados
no cabeçalho, remoendo muito sossegados, esperando que qualquer peão os
ajoujasse.
Assim correram os anos, sempre nesse
mesmo serviço.
Quando entrava o inverno eles eram
soltos para o campo, e ganhavam num rincão mui abrigado, que havia por detrás
das casas. Às vezes, um que outro dia de sol mais quente, eles apareciam ali
por perto, como indagando se havia calor bastante para a gente banhar-se. E mal
que os miúdos davam com eles, saíam a correr e a gritar, numa algazarra de
festa para os bichos.
— Olha o Dourado! Olha o Cabiúna!
Oôch!... oôch!…
E algum daqueles traquinas sempre
desencovava uma espiga de milho, um pedaço de abóbora, que os bois tomavam,
arreganhando a beiçola lustrosa de baba, e punham-se a mascar, mui
pachorrentos, ali à vista da gurizada risonha.
Pois veja vancê... Com o andar do
tempo aquelas crianças se tornaram moças e homens feitos, foram-se casando e
tendo família, e como quera, pode-se dizer que houve sempre senhoras-donas e
gente miúda para os bois velhos levarem ao banho do arroio, no carretão.
Um dia, no fim do verão, o Dourado
amanheceu morto, mui inchado e duro: tinha sido picado de cobra.
Ficou pois solito, o Cabiúna; como era
mui companheiro do outro, ali por perto dele andou uns dias pastando,
deitando-se, remoendo. Às vezes esticava a cabeça para o morto e soltava um
mugido... Cá pra mim o boi velho — uê! tinha caraca grossa nas aspas! — o boi
velho berrava de saudades do companheiro e chamava-o, como no outro tempo, para
pastarem juntos, para beberem juntos, para juntos puxarem o carretão...
— Que vancê pensa!… os animais se
entendem... eles trocam língua!...
Quando o Cabiúna se chegava mui perto do outro e farejava
o cheiro mim, os urubus abriam-se, num trotão, lambuzados de sangue podre, às
vezes meio engasgados, vomitando pedaços de carniça...
Bichos malditos, estes encarvoados!...
Pois, como ficou solito o Cabiúna,
tiveram que ver outra junta para o carretão e o boi velho por ali foi ficando.
Porém começou a emagrecer... e tal e qual como uma pessoa penarosa, que gosta
de estar sozinha, assim o carreteiro ganhou o mato, quem sabe, de penaroso.
também...
Um dia de sol quente ele apareceu no
terreiro.
Foi um alvoroto da miuçalha.
— Olha o Cabiúna! O Cabiúna! Oôch!
Cabiúna! oôch!...
E vieram à porta as senhoras-donas, já
casadas e mães de filhos, e que quando eram crianças tantas vezes foram levadas
pelo Cabiúna; vieram os moços, já homens, e todos disseram:
— Olha o Cabiúna! Oôch! Oôch!...
Então, um notou a magreza do boi;
outro achou que sim; outro disse que ele não agüentava o primeiro minuano de
maio; e conversa vai, conversa vem, o primeiro, que era mui golpeado, achou que
era melhor matar-se aquele boi, que tinha caraca grossa nas aspas, que não
engordava mais e que iria morrer atolado no fundo dalguma sanga e... lá se ia
então um prejuízo certo, no couro perdido...
E já gritaram a um peão, que trouxesse
o laço; e veio. A mão no mais o sujeito passou uma volta de meia-cara; o boi
cabresteou, como um cachorro...
Pertinho estava o carretão, antigão,
já meio desconjuntado, com o cabeçalho no ar, descansando sobre o muchacho.
O peão puxou da faca e dum golpe
enterrou-a até o cabo, no sangradouro do boi manso; quando retirou a mão, já
veio nela a golfada espumenta do sangue do coração...
Houve um silenciozito em toda aquela gente.
O boi velho sentindo-se ferido, doendo
o talho, quem sabe se entendeu que aquilo seria um castigo, algum pregaço de
picana, mal dado, por não estar ainda arrumado... — pois vancê creia! —:
soprando o sangue em borbotões, já meio roncando na respiração, meio
cambaleando o boi velho deu uns passos mais, encostou o corpo ao comprido no
cabeçalho do carretão, e meteu a cabeça, certinho, no lugar da canga, entre os
dois canzis... e ficou arrumado, esperando que o peão fechasse a brocha e lhe
passasse a regeira na orelha branca...
E ajoelhou… e caiu… e morreu...
Os cuscos pegaram a lamber o sangue,
por cima dos capins… um alçou a perna e verteu em cima... e enquanto o peão chairava
a faca para carnear, um gurizinho, gordote, claro, de cabelos cacheados, que
estava comendo uma munhata, chegou-se para o boi morto e meteu-lhe a fatia na
boca, batia-lhe na aspa e dizia-lhe na sua língua de trapos:
— Tome, tabiúna! Nó té... Nô fá bila,
tabiúna!...
E ria-se o inocente, para os grandes,
que estavam por ali, calados, os diabos, cá pra mim, com remorsos por aquela
judiaria com o boi velho, que os havia carregado a todos, tantas vezes, para a
alegria do banho e das guabirobas, dos araçás, das pitangas, dos guabijus!…
— Veja vancê, que desgraçados; tão
ricos… e por um mixe couro do boi velho!...
— Cuê-pucha!…é mesmo bicho mau, o
homem!
CONTO DE SIMÕES
LOPES NETO –
PROFESSOR: ELEMAR
GOMES –
ESPECIAL: SEMANA FARROUPILHA - ESTE CONTO ESTÁ NO BLOG.