Um diálogo difícil
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Artigo de Ivan Angelo publicado na revista semanal brasileira Veja em 16 de maio de 2001 (página 126):
Imagem publicada com a matéria Um homem do interior esbarra no jargão de uma secretária - Financeira Saraiva, boa-tarde - diz a secretária. - Boa-tarde, moça. O doutor Saraiva está? - Quem gostaria? Para ouvidos traquejados isso significa: pode estar ou pode não estar, depende de quem está falando. O verbo gostar no condicional joga o acesso ao doutor no terreno das possibilidades. Mas as palavras têm um sentido mais amplo do que julga quem faz uso delas no sentido particular. - Gostaria não é bem o causo. Eu vim mais por precisão do que por gosto. A resposta não servia a ela, que estava interessada no "quem" da pergunta. Já o interlocutor prestara maior atenção no verbo porque, para ele, essa era a palavra que fazia mais sentido na circunstância. A secretária voltou à pergunta dando ênfase na busca da informação que desejava: - Mas quem gostaria? - Gostaria de quê? Para fugir do impasse, a secretária resolveu usar a língua geral: - O que estou perguntando é qual o seu nome. Quer dizer: quem gostaria de falar com ele. Aí, para o homem do interior, já era quase uma questão. E ele tornou, muito polido, mas marcando opinião: - Uai, mas, se eu perguntei primeiro se o doutor Saraiva está, a senhora tinha de me responder primeiro, antes de rebater com outra pergunta, não é não? Eu penso assim. - Como é que vou encaminhar o senhor sem saber o seu nome? - Posso até dar o nome, mas eu não disse que queria falar com ele. Só perguntei se ele estava... A secretária, com a objetividade da profissão, tentou contornar: - O senhor quer falar com ele? - Gostaria - ironizou o homem. - Bom, então, por favor, o senhor pode me dizer o seu nome? - Posso. É João Honorato. Aí veio outra pergunta fatal das secretárias: - De onde? Para quem conhece os códigos, a pergunta significa: de qual empresa é o senhor, qual é o seu negócio? Para quem não conhece: - De onde? Ah, sou de um lugar muito pequeninozinho perto de Barbacena, a senhora nunca deve ter ouvido falar: Desterro do Melo. Ouviu falar? - Não, não ouvi - e lá veio outra pergunta do repertório: - É particular, senhor? - Aí a senhora me pegou. O Desterro? Particular? - O assunto, senhor, é particular? - Ah, bom. Por enquanto, é. Daqui a pouco tá na boca do povo. - Pode adiantá-lo, senhor, para eu estar passando para o doutor Saraiva? - Não, eu mesmo passo. A secretária vencida e grilada contatou o patrão, que atendeu na maior presteza ao ouvir o nome de João Honorato. Foi uma conversa longa. Pela porta entreaberta ela ouviu duas risadas, apelos, promessas, regateios, garantias, agradecimentos. Depois o doutor Saraiva veio até ela: - Dona Regina, o senhor João Honorato está vindo aí. Disse que teve dificuldade de entender a senhora. Pelo amor de Deus, fale simples com ele, como se ele fosse a sua mãezinha, o seu avozinho. De hoje em diante, por favor, não mais "quem gostaria?", "de onde?", "estar passando", "qual é o assunto". Ele acha que quem telefona sabe o que quer e com quem quer. - Mas quem é esse João Honorato? - O rei da soja. Agora é nosso patrão: vendi minha parte para ele nesse fim de semana. |
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